Por Edson Lau Filho
A democracia no Brasil, sob o guarda-chuvas da Constituição Cidadã de 1988, nos entregou inúmeras conquistas que, muitas vezes, deixamos de enaltecer: universalização do ensino básico, a estabilização da moeda, a rede de proteção social e o fortalecimento das instituições, através da independência dos poderes constituídos, são alguns dos exemplos.
Contudo, o Brasil pós-88 ainda não resolveu a questão da violência, em especial a violência policial. Esta uma herança muito antiga em nossa sociedade, continua sendo um dos maiores entraves para a construção de uma sociedade que preze pela dignidade humana, como a nossa Constituição propugna. Mais do que incidentes isolados, os casos recentes ilustram um padrão estrutural de abuso de poder que insiste em assombrar as forças de segurança. Nas últimas semanas alguns episódios voltaram a atenção para o tema, que infelizmente não surpreende, mas choca pela repetição brutal.
Em São Paulo, um homem foi literalmente jogado de uma ponte por um policial. Ainda em São Paulo, um policial à paisana assassinou um jovem com tiros nas costas após furtar produtos de limpeza, o PM alegou legítima defesa, mas as imagens de uma câmera confirmam a covardia da ação. Uma idosa de 63 anos foi também agredida na garagem de sua casa. No Rio de Janeiro, uma criança de 4 anos foi executada durante uma operação em uma favela.
O barulho foi grande e até o Ministério da Justiça, depois de muito tempo, fala em estabelecer protocolos do uso progressivo da força. Contudo este problema não é privilégio de estados governados por opositores do PT, muito pelo contrário, a letalidade policial é absurdamente grande também nas unidades da federação governadas pela esquerda.
Na Bahia, reduto do PT há mais de 16 anos, foram mais de 1700 mortes causadas pela polícia local, de longe o estado com o maior número absoluto e a maior taxa de letalidade policial do país, são 10,4 mortes por 100 mil habitantes. O ranking da letalidade policial, do Anuário de Segurança Pública de 2023, aponta que Rio de Janeiro, Pará, Goiás, e Acre respectivamente com 8,3; 7,7; 7,6 e 6,9 mortes por 100 mil habitantes, têm as polícias mais mortais do país. Os dados reforçam a ideia de que a violência policial é endêmica.
Desta forma, fica claro que o treinamento, a cultura e a gestão das polícias brasileiras estão profundamente descoladas de uma lógica de segurança pública que proteja, ao invés de exterminar. O problema não é novo e sua perpetuação parece ser uma escolha. Há uma cultura arraigada na lógica de confronto e que estabelece zonas de guerra. É uma guerra não declarada, mas real, onde o inimigo tem cor, endereço e classe social bem definidos.
A imagem do “herói de farda” domina o imaginário policial, assim parece ser mais fácil fazer justiça com as próprias mãos, então, a força bruta sobrepõe a negociação. Concomitantemente, acontece a ausência de responsabilização, assim, é reforçada a ideia de que o abuso é parte do trabalho e não um desvio. Torna-se, portanto, necessária uma transformação cultural e estrutural. Mas essa transformação não virá apenas de discursos inflamados ou de notas de repúdio. É necessário coragem e comprometimento.
O papel das forças de segurança não é subjugar, mas proteger. Mediação de conflitos, direitos humanos e inteligência emocional devem ser centrais na formação destes profissionais. As câmeras corporais devem ser padrão, estudos já comprovaram que a transparência protege tanto os cidadãos quanto os próprios policiais. As corregedorias devem ser fortalecidas, independentes e com autonomia real, a fim de para romper o ciclo de impunidade.
É preciso também dar melhores e mais humanas condições de trabalho aos policiais. Um profissional exausto, mal remunerado, mal equipado e sem suporte psicológico está mais propenso a reagir com violência. Cuidar da polícia e da saúde mental da tropa também é parte fundamental da solução. A violência policial no Brasil não tem um sotaque específico, uma cor partidária ou preferência ideológica do governador de plantão, ela é uma crise de valores democráticos. Não podemos aceitar que a democracia seja manchada pela brutalidade de quem deveria protegê-la.